‘Estamos Aqui’: A força do rap em Ilhéus

Uma discussão sobre o peso do movimento rap de Ilhéus e seus significados

 

Por Abel Oliveira

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Apresentação de rap no primeiro “Mobiliza Hip Hop”, no Centro Estadual de Educação Profissional Álvaro Melo Vieira (CEEP AMEV), em Ilhéus.

Se as primeiras coisas que vem à sua cabeça quando você pensa em Ilhéus são as praias e os romances de Jorge Amado já passou da hora de rever seus conceitos. O potencial cultural de Ilhéus é enorme e, nesse contexto, uma expressão que vem ganhando forma, construindo seu próprio palco, formando o seu público e tomando a cidade é o rap. O estilo musical vem se firmando não só por seus aspectos estéticos ou pela batida gostosinha de ouvir, mas principalmente pelo som que dá vazão a um conteúdo político consciente e consistente. A galera representa!

Por falar em representatividade, para elaborar essa matéria eu conversei com os MCs Lunah M.V., Billy Fat e Cijay. Três ícones reais da juventude ilheense, que têm contribuído muito para o fortalecimento do rap na cidade. Cijay, MC de 22 anos e estudante do curso de Comunicação Social da UESC, cita outros representantes do gênero musical no cenário local. “Aqui em Ilhéus tem muita gente fazendo rap, produzindo e gravando muita coisa. Além de mim, tem o Billy Fat, o Arte Marginal, o Intuito Neutro, o Hemisfério Atual, o Reynaldo, entre outros”.

Billy Fat, por sua vez, faz questão de destacar os diferenciais da cena de Ilhéus: “Acredito que a cidade tenha um peso cultural muito grande em relação à arte e uma galera inspirada para fazer boa música. O pessoal da produção musical também se articula bastante. Então, Ilhéus tem um grande diferencial para oferecer para o sul da Bahia, ou até mesmo para a Bahia inteira”, garante o MC membro do grupo Máfia Crew.

O rap constitui, juntamente com as expressões do grafite (visual), do break (dança) e do DJ (música eletrônica), os quatro elementos da cultura hip hop. Em Ilhéus, o Coletivo Rap de Rua é um dos responsáveis pela difusão desse movimento, respeitando toda a sua integralidade.

O movimento hip hop e o Coletivo Rap de Rua

O Coletivo Rap de Rua surge entre o final de 2014 e o início de 2015 por meio de um grupo de jovens interessados em disseminar a cultura hip hop em Ilhéus e região. Em seus três anos de atuação, o coletivo, sem fins lucrativos, levantou a bandeira do hip hop como uma ferramenta de intervenção sociocultural, por meio de ações itinerantes em espaços públicos e urbanos, sobretudo os periféricos.

“São ações voltadas para a difusão da cultura hip hop, porque acreditamos que ela é uma ferramenta importante para que a gente esteja dialogando com esta juventude preta e da periferia, que é vulnerabilizada por conta do descaso do Poder Público e da falta de uma agenda cultural que os contemple. O hip hop tem essa facilidade de dialogar justamente com esse público. A nossa principal bandeira é a luta contra o genocídio da juventude do povo preto”, explica Cijay, que também é um dos membros do movimento.

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Cijay se apresentando em Serra Grande (Foto: Wagner Ferreira).

Uma marca muito forte dessa nova geração de rappers é a sua relação com a cidade, com os espaços que vem sofrendo mudanças ao longo da história, e o rap, paralelamente, vem acompanhando e interferindo nesse processo.

“Aqui em ilhéus, o rap surge num contexto de guerra, num contexto de uma cidade que já não é mais dividida pelo recorte geográfico, mas dividida pelos domínios de gangues. Furando esse bloqueio, a gente conseguiu fazer ações dentro da Jamaica, que é uma comunidade que vivencia um grave conflito, no [Teotônio] Vilela, na Zona Sul e em outros lugares. Então, a gente percebe que o rap ultrapassa essas barreiras que dividem e recortam a cidade”, argumenta Cijay.

Atualmente, o coletivo vive um processo de ampliação dos seus espaços de atuação e, por isso mesmo, está agora começando a entrar nas escolas com uma proposta de intervenção muito bem estruturada e continuada, o projeto “Mobiliza Hip Hop”, que teve sua primeira edição realizada no dia 21 de outubro, no Centro Estadual de Educacional Profissional Álvaro Melo Vieira (CEEP AMEV).

‘Em Terra de Axé, Rap não Paga Cachê’

“Em terra de axé, rap não paga cachê”. Esse é o fragmento de uma música ainda sem nome. A composição é fruto de uma parceria entre o MC Billy Fat, o MC Liphas, de Buerarema, e Tinho Ferraz, integrante do grupo de rap itabunense Monkey the Money. De acordo com Billy Fat, a ideia é desenvolver uma música que simbolize a integração e a articulação da galera que constrói o rap do sul da Bahia.

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MC Billy Fat cantando no “Skate Protest”, em Camacã. (Foto: Thailon Durigan).

O fragmento em destaque, por sua vez, levanta uma questão bastante pertinente que diz respeito à desvalorização de um estilo musical em detrimento de outro com maior apelo mercadológico. Essas questões são pensadas por Billy Fat dentro do cenário de Ilhéus, onde ele aponta a figura dos produtores e gestores culturais como primordial para a transformação da realidade atual.

“Eu acredito que o rap está passando por uma ascensão igual a do samba. Tem muita gente curtindo rap, mas não estão valorizando os artistas da cidade. Porém, o pior não é nem o público, pois ele vai chegar em você com o tempo. O problema é o contratante, pois ele não dá o respeito necessário que a gente precisa, traz atrações grandes de outros estados e coloca a gente junto. Nós somos os artistas da casa e, ao invés, de nos enaltecer, fica muito naquela linha de viajar com o cara que é de fora, que já está na mídia, e isso acaba não levando sua própria cidade para outro patamar”, argumenta o MC.

Mais uma vez a mudança desse paradigma parece ter que acontecer também de dentro para fora, no interior do próprio movimento. “A gente faz muita ação de graça, muita ação comunitária, então na hora de pagar, a galera não quer pagar. Isso acontece muito aqui na cidade. A gente já plantou uma ideia de cultura hip hop, agora está na hora de plantar a ideia de valorização dessa cultura. Assim, para 2018, é um consenso entre nós, rappers, que não vamos mais tocar de graça”, afirma Cijay.

‘Para manos e minas’

Não são só os “manos” que fortalecem a cena do rap aqui na região, as “minas” também! No entanto, é prudente destacar que este seja um espaço também ainda dominado por homens e a presença feminina é muito pequena, comparativamente. Foi pensando em estimular e convocar as mulheres para o rap, tornando-o mais igualitário, que a MC Lunah M.V., de 20 anos, gravou a música “Para manos e minas” com o rapper solo Victor Souza Ogiva.

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MC Lunah M.V. se apresentando na “Ocupação Hip Hop UFSB” (Foto: Derik Correia).

“A cena do rap, como toda cena underground [novidade no cenário cultural], está precisando de investimento, reconhecimento e união para a gente conquistar os espaços que são nossos por direito, cultural e socialmente. Além de todo o preconceito que a gente já passa, ainda piora para quem é feminista, porque é mal vista, como se essa luta que mal começou não tivesse motivo nenhum”, conta Lunah.

Ela cita ainda outras mulheres que também estão atuando no cenário do rap regional, fortalecendo a cena e ocupando seus espaços, como Karen Oliveira, de Itabuna, Emmer Carvalho, de Canavieiras, e Stela Lagos, de Itacaré. A esse respeito, o Coletivo Rap de Rua está realizando um mapeamento que busca perceber o recorte de gênero no movimento em Ilhéus. Os resultados parciais demonstram uma desigualdade muito grande entre homens e mulheres e evidenciam um desafio ainda a ser superado pelo hip hop ilheense.

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Participação feminina no hip hop ilheense é de apenas 12,5%, de acordo com mapeamento realizado em 2017. (Gráfico: Coletivo Rap de Rua).

‘Ilha dos Réus: A Nova Geração do Rap Ilheense’

Com o objetivo de discutir a ascensão do rap em Ilhéus e sua luta por valorização, os estudantes de Comunicação Social da UESC, Elise Gouveia, Ítalo Montargil e Mateus Albuquerque, realizaram o radiodocumentário “Ilha dos Réus”. A obra conta com depoimentos de Jef Rodrigues, Lula Soares (Digital Apparatus), Billy Fat, Igor Moutta (Intuito Neutro), Matheus Gerônimo (Shiva), Lunah M.V. e Cijay, além de outros MCs e pessoas engajadas na cena hip hop. Mateus, um dos produtores do radiodocumentário, explica porque escolheu este tema:

“É importante fazer um radiodocumentário com esse tema para dar visibilidade à nova geração dos rappers da cidade, por perceber que eles estão num intenso trabalho, levando mesmo a sério a produção de rap na região. E também porque a gente percebeu que o rap é uma forma de falar sobre suas vivências mesmo, de falar sobre suas realidades”.

Por fim, vale dizer que enche os olhos perceber que esse movimento se expande solidamente e, unicamente, pelo esforço de quem está atuando na cena. É manifestação popular genuína, que vem de dentro da sociedade e que conseguiu se estabelecer mesmo sem incentivos externos e enfrentando diversos preconceitos. Realidade esta que tende a melhorar, não só porque agora sua visibilidade cresce, mas principalmente porque o movimento possui fundamentos contundentes e não se confundirá com tendências. Os “manos” e as “minas” estão aí fazendo a cena “pesadona”!

Aproveite e ouça o radiodocumentário “Ilha dos Réus: A Nova Geração do Rap Ilheense” aqui:

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